8 de maio de 2013

passagem das horas

(c) 2013, Lisboa

Doí-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói,
Declina dentro de mim o sol no alto do céu.
Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos.
Vamos ó cavalgada,q uem mais me consegues tornar?
Eu que, veloz, voraz, comilão da energia abastracta,
Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo,
Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés,
Calcar, calcar, calcar até não sentir...
Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis,
Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou. 

- «Passagem das Horas», de Álvaro de Campos

30 de abril de 2013

nenhum olhar

(c) 2011, algures por Portugal






«E o mundo acabou. Inexplicavelmente, ou sem uma explicação que possa ser dita e entendida. O mundo acabou, como num instante em que se fechassem os olhos e não se visse sequer o que se vê com os olhos fechados. As crianças morreram, os risos das crianças, espalhados no sol e nos sábados e em Agosto, morreram. O mundo acabou como uma noite lançada do céu, e nunca mais se ouviram os risos das crianças, nunca mais foi sábado, nunca mais foi Agosto, nunca mais houve sol. E isso que era a ausência do mundo não era nem mesmo uma ausência, não era sequer como o espaço vago onde uma pessoa que morreu costumava estar e se olha e existe quando se sente; não era nem mesmo uma ausência, porque não havia ninguém para a sentir. Era uma noite infinita que acumulava todo o medo de todas as noites desde a primeira noite do mundo. Mas também o medo não existia, porque não existia ninguém para o sentir. O lugar das árvores, as suas formas e os seus pensamentos tinham morrido. Os ribeiros, a água fresca, o som quase silencioso da água fresca, os ribeiros tinham morrido. Os campos largos, as ervas secas, as pedras perdidas no chão, toda a lonjura dos campos, o vento sobre a terra, as searas, os campos do tamanho do olhar, a terra tinha morrido. As casas, os muros caiados tinham morrido. Os pássaros, a meio de um voo, os seus piares no fim de tarde tinham morrido. Já não havia tardes, manhãs, noites. Nunca mais o dia se levantaria lentamente, com os olhos baços numa madrugada; nunca mais ninguém se sentaria a sonhar a calma num fim de tarde, nunca mais a noite vaguearia sobre as casas a cobri-las com a sua capa rasgada de estrelas. O mundo acabou e nem o tempo prosseguiu. Os minutos não passavam porque não existiam, como não existiam os momentos ou os olhares. O infinito era o infinito de não ser nem infinito, nem nada. A morte não existia no meio de todas as coisas mortas. Não existiam os cadáveres. Tinha morrido a memória da morte. As crianças morreram e isso, que era a única coisa pela qual valia a pena chorar, não era lamentado por ninguém, porque já não havia dor, já não havia lágrimas, já não havia olhos ou peito para chorar.» 


- «Nenhum Olhar», de José Luís Peixoto

25 de abril de 2013

liberdade?

(c) 2011, Lisboa




«Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.»

- Sophia de Mello Breyner Andresen

22 de abril de 2013

o estranho caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde.

(c) 2009, Rua Augusta - Lisboa


«Aqui devo falar apenas em termos teóricos, dizendo, não aquilo que sei, mas o que penso ser o mais provável. O lado maligno da minha natureza, para o qual tinha agora transferido o timbre da eficácia, era menos robusto e menos desenvolvido do que o lado benigno, a que acabara de renunciar. Mais uma vez, no decurso da minha vida, que fora, apesar de tudo, em nove décimos uma vida de esforço, virtude e controlo, esse lado maligno fora menos exercido e muito menos consumido. Daí o motivo, na minha opinião, por que Edward Hyde era muito mais baixo, franzino e jovem do que Henry Jekyll. Precisamente como o bem brilhava nas feições deste último, o mal estava ampla e visivelmente estampado no rosto do outro. Além disso, o mal (que ainda acredito ser o lado mortífero do homem) deixara naquele corpo uma marca de deformidade e decadência. E, no entanto, quando olhei para aquele ídolo hediondo no espelho, não tive consciência de alguma repugnância, mas antes de um gesto de acolhimento. Aquele também era eu. Parecia natural e humano. A meus olhos, continha uma imagem mais vívida do espírito, parecia mais expressivo e singular, do que fisionomia imperfeita e dividida que até então me habituara a designar como minha. E não havia dúvida que tinha razão. Observara que quando usava o semblante de Edward Hyde ninguém se podia aproximar de mim sem uma visível apreensão. Na minha opinião, isto devia-se ao facto de todos os seres humanos que conhecemos serem uma mistura do bem e do mal; e Edward Hyde, caso único na humanidade, era o mal em estado puro.» 

- «O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde», de Robert Louis Stevenson

21 de abril de 2013

impossível é não viver.

(c) 2011, Setúbal

                                                                            




«Se te quiserem convencer de que é impossível, diz-lhes que impossível é ficares calado, impossível é não teres voz. Temos direito a viver. Acreditamos nessa certeza com todas as forças do nosso corpo e, mais ainda, com todas as forças da nossa vontade. Viver é um verbo enorme, longo. Acreditamos em todo o seu tamanho, não prescindimos de um único passo do seu/nosso caminho.

Sabemos bem que é inútil resmungar contra o ecrã do telejornal. O vidro não responde. Por isso, temos outros planos. Temos voz, tantas vozes; temos rosto, tantos rostos. As ruas hão-de receber-nos, serão pequenas para nós. Sabemos formar marés, correntes. Sabemos também que nunca nos foi oferecido nada. Cada conquista foi ganha milímetro a milímetro. Antes de estar à vista de toda a gente, prática e concreta, era sempre impossível, mas viver é acreditar. Temos direito à esperança. Esta vida pertence-nos.» 

 - José Luís Peixoto